Aulas Abertas

O moderno ancorado na tradição

                                                                                                         Vila Lobos, xilogravura, 2022. Julia Contreiras

Ao participar da Semana de Arte Moderna, Heitor Villa-Lobos buscava sobretudo o reconhecimento da crítica e do público paulistanos, que ainda não conheciam sua música. A necessidade de afirmar-se como compositor influenciou sua estreia em São Paulo. Para o repertório musical de mais de quatro horas apresentado no festival, Villa-Lobos escolhe obras que empregam formas calcadas na tradição, compostas para formações clássicas da música de câmara, como sonatas, trios e quartetos.

Decide portanto não mostrar obras mais ousadas, como Suíte Popular Brasileira e Chôros nº1, ambas para violão, instrumento associado à música popular. “Para ele, naquele momento, apresentar uma obra para violão em um concerto clássico estava fora do horizonte”, explica a pesquisadora Camila Fresca, que oferece em março um novo curso na Sala Jaú: A música na Semana de 22: antes, durante e depois. Na Semana de Arte Moderna, Villa-Lobos queria demonstrar que dominava as técnicas de composição das formas consagradas pela tradição.

Essa intenção, observa Fresca, relacionava-se com a formação do compositor. Villa-Lobos era um autodidata, não se formara pelo Instituto Nacional de Música, trajetória considerada obrigatória naquele tempo: “Ele era um homem que se fez na prática, que estudou por conta própria, que aprendeu fazendo, e isso transparece nas críticas que ele recebia dos jornais. Acusam-no de ser moderno e essa modernidade deriva, segundo os críticos, do fato de ele não ter estudo formal”.
 


“É como se a Semana e o movimento modernista tivessem libertado os compositores, entre os quais o próprio Villa-Lobos, para uma realização mais radical, em especial no sentido de incorporar elementos da cultura popular brasileira.”



Mas ainda que presas à tradição, as peças que Villa-Lobos apresenta na Semana de Arte Moderna eram escritas em uma linguagem considerada, no ambiente musical do Rio de Janeiro e de São Paulo, a mais moderna da época: uma linguagem inspirada na música francesa da passagem do século XIX para o século XX. “Arnold Schoenberg escreveu Pierrot Lunaire em 1912, dez anos antes da Semana, mas no contexto brasileiro não era ouvido. Ninguém por aqui, à época da Semana, fazia algo mais moderno do que Villa-Lobos”. 

De todo modo, uma revolução na linguagem musical do Brasil ocorre somente depois da Semana de 22, avalia Camila Fresca. “É como se a Semana e o movimento modernista tivessem libertado os compositores, entre os quais o próprio Villa-Lobos, para uma realização mais radical, em especial no sentido de incorporar elementos da cultura popular brasileira.” Villa-Lobos torna-se então o principal expoente de um esforço coletivo de construção de uma música nacional, proposta ambiciosa que contou com o estímulo e o apoio teórico fundamental de Mário de Andrade. 

A liberação da música de Villa-Lobos, entretanto, relaciona-se também com duas estadias do compositor em Paris – 1923-24 / 1927-30 – onde o compositor entra em contato direto com as vanguardas artísticas. De acordo com Fresca, somente após a primeira passagem pela capital francesa Villa-Lobos se sentirá à vontade para apresentar sua produção mais inventiva, como as obras para violão. “A série Choros, composta antes e depois de 1922, é uma música completamente moderna e imbuída do espírito modernista”.


Por que a música não seria a mesma sem o modernismo?

Para Camila Fresca, “Mário de Andrade atuou intensamente para a construção de uma música nacional. Seu engajamento ganha forma em escritos posteriores à Semana de Arte Moderna: em artigos de crítica, em ensaios teóricos e na correspondência com jovens compositores. Destaca-se, nesse campo, o célebre Ensaio sobre Música Brasileira (1928), que exerceu grande influência sobre a produção musical no Brasil do século XX. Sem a militância incansável de Mário de Andrade, a música brasileira seria hoje completamente diferente.”


Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, 1924 

Quando ele [Villa-Lobos] começa a falar e diz teorias, críticas etc é um pavor. Nunca vi cabeça mais embrulhada que aquela. Às vezes tem críticas finíssimas, acertadíssimas. Mas isso vem de embrulho com uma porção de nefelibatismos, erros e até tolices. Mas não faz mal.  A gente aguenta a conversa dele porque lembra-se da música.
 

Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, Edusp, 2001 – org. Marcos Antonio de Moraes

“Mário de Andrade está dizendo que, se você quer conhecer as ideias de Villa-Lobos, ouça a música, não peça para ele explicar nada.” (Camila Fresca)


Guiomar Novaes resistiu aos pedidos e não tocou Chopin

A célebre pianista Guiomar Novaes, reconhecida dentro e fora do Brasil, apresentou-se na segunda noite da Semana de Arte Moderna. Camila Fresca explica que, em um recital de no máximo vinte minutos, Guiomar fez um repertório “moderno, de acordo com o tom geral da Semana”. Apesar de ser uma ilustre intérprete de Chopin, a pianista preparou um repertório francês contemporâneo, cuja peça mais antiga não tinha vinte anos. O público a ouvia em silêncio, mas pedia para ela tocar Chopin no bis, conta Fresca. “Ela foi bem coerente e resistiu a essa pressão. Apresentou uma obra mais recente, do século XX, de Henri Stierlin-Vallon, um suíço da mesma estética em que ela vinha fazendo”. 

Olhar


Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. Recriação da obra-prima de Mário de Andrade, que é situada no contexto sociopolítico brasileiro da década de 1960. Disponível no YouTube.


O índio de casaca (1987), de Roberto Feith. Documentário sobre Heitor Villa-Lobos, contém depoimentos importantes sobre a vida e a obra do compositor. Disponível no YouTube.


São Paulo, sinfonia da metrópole (1929), de Adalberto Kemeny e Rudolf Lustig. Documentário sobre a cidade de São Paulo nos anos 1920, com foco no processo de modernização que transformava a paisagem urbana e social da capital paulista. Disponível no YouTube.


Escutar


Toda Semana. Conjunto de quatro CDs que reúne a íntegra das obras musicais apresentadas na Semana de Arte Moderna. Contém ainda gravações de poemas e de trechos de conferências lidas no festival. Disponível para escuta no Sesc Digital.


Ler


22 por 22. A Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporâneos. Livro organizado por Maria Eugenia Boaventura. Edusp, 2008. Coletânea abrangente de artigos sobre a Semana de Arte Moderna, escritos no calor da hora. Disponível nas livrarias.


O movimento modernista. Conferência de Mário de Andrade. Realizada em 1942 no Rio de Janeiro, por ocasião dos vinte anos da Semana de Arte Moderna. Nela, Mário de Andrade faz um balanço do significado histórico da Semana de 22. Disponível para download por meio deste link.


História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna. Livro de Mário da Silva Brito. História da formação do movimento modernista brasileiro e da preparação para os combates de 22. Civilização Brasileira, 1974. Esgotado, encontra-se disponível em sebos.   


O curso on-line A música na Semana de 22: antes, durante e depois, com Camila Fresca, vai até 28 de março. Realize a sua inscrição e receba o vídeo da primeira aula.

Lévi-Strauss, Tolstói, Machado de Assis, Verdi e Simone de Beauvoir estão na programação de março da Sala Jaú. Inscreva-se.


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